18 dezembro 2016

As visões e as assombrações dos PINK FLOYD

A perda de Syd Barrett e o caminho até The Dark Side of the Moon

As dúvidas que os assombravam desde a saída de Syd Barrett


A edição de uma opulenta caixa retrospectiva do período 1965-1972 mostra-nos como a banda inglesa viveu a perda de Syd Barrett e encontrou o caminho até The Dark Side of the Moon. Ouvimos e vimos essas memórias e fazemos aqui uma viagem de (re)descobertas.

Sobre um palco, os quatro músicos quase se diluem entre as formas e cores que as projeções de imagens caleidoscópicas lançam sobre si. A música serve de perfeita banda sonora a um mundo de sensações que parecem transcender também as fronteiras dos corpos. Vive-se um ambiente de encantamento e descoberta.



O calendário, que indica que estamos na noite de 23 de dezembro de 1966, junta ali os Soft Machine, filmes de Andy Warhol e de Kenneth Anger. Mas quem está agora em cena é uma banda, ainda sem discos editados, que junta três estudantes de arquitetura e um de pintura.

A relação da música com as imagens encontra finalmente uma relação com um público e um lugar nesta primeira noite criada sob a designação UFO (uma ideia do produtor Joe Boyd e do jornalista e ativista John Hopkins).

Três meses depois o single de estreia, Arnold Layne, levaria pela primeira vez o nome da banda a distâncias maiores, transportando o culto, entretanto nascido nas noites UFO a outros patamares, mal imaginando todos os que ali estavam que à sua frente dava passos decisivos na construção da sua identidade um dos maiores fenómenos de toda a história da cultura pop/rock.

Foi entre ecos destes dias, em finais de 1966 e inícios de 1967, que habitualmente se fez até muito recentemente o arranque da história em disco dos Pink Floyd. Porém, em finais de 2015, o EP (com edição limitada a 1050 cópias) a que chamaram 1965: Their First Recordings revelava-nos um prólogo na forma de um conjunto de canções que lembravam uma etapa inicial ainda distante das visões com que se colocaram na linha da frente da invenção de uma ideia musical para o psicodelismo.

Ali, entre originais de Syd Barrett e de Roger Waters que traduzem um interesse pelo rhythm'n'blues e uma versão de um standard de blues de Slim Harpo, uns muito jovens Pink Floyd registavam ecos de uma etapa anterior ao momento em que, como Arquimedes, gritaram o eureka que lhes abriu uma porta para se encontrarem.

A história atribulada da banda que envolve em 1968 a partida precoce do vocalista e principal compositor e chegada determinante de um novo elemento acabaria por conhecer mais episódios de epifanias e de mudanças de rumo do que o habitual em percursos pop/rock. E até encontrarem, em 1973, o episódio de afirmação maior em The Dark Side of the Moon, passaram por uma sucessão de ousadias, experiências e renascimentos que acabaram por fixar na sua discografia um dos percursos mais invulgarmente versáteis da história.

As reedições em vinil, já disponíveis, dos álbuns editados entre 1967 e 1972, e uma caixa de 27 discos (que junta CD, vinil e DVD, incluindo temas inéditos, misturas e takes alternativos, filmes para os quais fizeram música e, sobretudo, os registos das sessões para a BBC e de muitas atuações ao vivo) contam-nos agora a odisseia que separa esses mesmos registos que antecedem as visões que fizeram a diferença nas noites UFO do momento em que precede diretamente a chegada do álbum de 1973, aquele com a imagem icónica de um prisma que decompõe um feixe de luz, que os transformou num caso de popularidade com expressão planetária.

Há um momento marcante na definição de um rumo... Um primeiro passo no caminho que levaria uma banda emergente para além da paixão pelos blues em que nascera a sua vivência conjunta.

Surge nas férias de verão de 1965 quando chega às imediações de Cambridge uma nova obsessão que tinha por principal voz o escritor norte-americano Timothy Leary, que no ano anterior tinha publicado o influente The Psychedelic Experience.

Há relatos da primeira ocasião em que Syd Barret experimentou LSD, alguns referindo como ficara horas a contemplar uma caixa de fósforos, uma ameixa e uma laranja. O episódio teria consequências, uma vez que abrira outras portas à percepção do jovem esteta, como o fez com tantos outros seus contemporâneos (incluindo outros elementos da banda) ...

Com o tempo ficaram para trás as primeiras referências e até aquele instante em que Syd Barrett partira dos nomes de dois bluesmen que admirava Pink Anderson e Floyd Council para criar um novo nome para a sua banda, que se passara a apresentar como The Pink Floyd Blues Band e, depois, The Pink Floyd Sound.

O primeiro concerto sob o novo nome tinha ocorrido em Kensington, Londres, em fevereiro de 65. As gravações desse ano (que a nova caixa recupera) são o documento mais nítido dos dias anteriores a esse verão de descobertas, mostrando «Double O» uma filiação nos blues, mas traduzindo já «Remember Me» sinais de possível partida para os destinos garage rock.

Foi por esta altura que os caminhos da banda se cruzaram com os de um jovem músico chamado David Jones (que pouco depois passaria a assinar como Bowie), que confessou ter ficado impressionado com a forte presença do vocalista, que subira ao palco com os olhos maquilhados.

Nos meses que se seguiram ao primeiro contacto de Syd com o LSD, a música começou a refletir também os resultados de experiências com outras potencialidades dos instrumentos, com o desafio da improvisação e com a descoberta de uma relação com as imagens que se acentuaria nas noites UFO que se tinham tornado um dos epicentros de uma Londres em busca de novas sensações.

Vale a pena lembrar que 1966, o ano que encerra com a estreia das noites UFO, fora não só palco da descoberta das novas potencialidades do estúdio como ferramenta de trabalho a usar na criação de nova música como se escutou em Pet Sounds, dos Beach Boys, ou Revolver, dos Beatles como foi ainda o ano em que os Cream deram importantes passos na criação de uma expressão mais pesada do rock'n'roll e, por Londres, surgia a figura igualmente desafiante e promissora de Jimi Hendrix.

Há 40 anos, Londres era como o descreveria anos depois, Storm Thorgerson (o autor de quase todas as capas de discos dos Pink Floyd) uma cidade «cheia de hormonas e de vida».

Nos Pink Floyd, por esses dias, a escrita, que estava essencialmente nas mãos de Syd Barrett, conciliava as demandas por novas formas com a estrutura mais clássica da canção. Se «Arnold Layne» e, mais ainda, «See Emily Play» (os dois primeiros singles) revelavam essa face mais clara e arrumada, já o visionário «Interstellar Overdrive» (que se tornara um dos momentos centrais dos concertos) procurava outro tipo de visões.

O grupo, que assinara pela EMI, gravou o seu álbum de estreia no estúdio 3 de Abbey Road na mesma altura em que, no estúdio 2, os Beatles registavam as sessões das quais nasceria Sgt. Pepper's (conta-se que McCartney ali os visitou, escutou e deu sugestões).

Tal como o álbum dos fab four, o LP de estreia dos Pink Floyd, The Piper at the Gates of Dawn (editado em agosto de 1967) traduz um retrato de uma ideia que abria novos caminhos à cultura pop/rock e que, juntamente com discos contemporâneos dos Jefferson Airplane, Love, The Seeds ou Grateful Dead, entre outros, definira os paradigmas da primeira geração do rock psicodélico.

A nova caixa antológica permite-nos acompanhar com mais detalhe do que nunca o que foi o registo em estúdio da progressiva rutura entre a banda e o seu vocalista.

Da ansiedade provocada pela necessidade de encontrar um sucessor para o êxito de «See Emily Play» (e o inédito «Vegetable Man» foi um dos temas criados nesse sentido) e do consumo excessivo de químicos resultaram comportamentos erráticos que as canções guardaram nas suas formas e palavras.

«Apples and Oranges», o single escolhido (que resultou num flop) e temas de sessões gravadas em 1967 como «In The Beechwoods», «Scream Thy Last Scream» ou «John Latham» (da qual se escutam aqui nove takes) são primeiros retratos de um tempo que antecedeu o afastamento que se tornou inevitável após desastrosas participações em programas de televisão e concertos igualmente assombrados.

Mas nem tudo corria sempre mal... E podemos descobrir aqui a memória de uma atuação em Estocolmo (que só peca por ter a voz mal captada), que documenta um tempo em que a relação a quatro ainda não transpirava para fora os males que corriam lá dentro.

Mais do que os temas das sessões de 1967 que não chegaram a disco, cabe na verdade ao segundo álbum da banda A Saucerful of Secrets (1968) o papel de ser o disco que documenta o tempo da separação.

O caráter imprevisível de Barrett tinha levado os outros elementos da banda a convidar o velho amigo do vocalista, David Gilmour, a juntar-se em palco para tentar compensar as falhas de Syd. Com uma formação alargada chegaram a ainda a trabalhar juntos em estúdio, podendo o tema «Set the Controls for the Heart of the Sun» traduzir um raro episódio criativo a cinco. Notaram todos então que a presença de Gilmour se tornara positiva e útil.

É por essa altura que se desenha a possibilidade de, seguindo o exemplo de Brian Wilson nos Beach Boys, votar Syd Barrett a trabalhos de escrita e gravação, poupando-o assim aos desafios (mais difíceis de gerir) da vida na estrada. Neste mapa novo de distribuição de trabalhos a criação de um novo disco avança em finais de 1967.

É ainda desse ano que data «Jugband Blues», aquele que acabaria por ser o único tema cantado e assinado por Syd entre os que surgiram depois no alinhamento do álbum. E a separação acabou mesmo por acontecer.

O disco, que representa uma continuação do caráter exploratório lançado pelo álbum de estreia, reflete, mais do que apenas a saída de Syd Barrett, um episódio de democrática divisão do protagonismo da escrita, num modelo, porém diferente do que assumiriam pouco depois em Ummagumma.

Este é, mesmo assim, um disco que encerra uma etapa, levantando desde logo inúmeras possibilidades, abrindo a parte final do tema-título sinais de um relacionamento com outros instrumentos que antecipa o que aconteceria em Atom Heart Mother, cabendo a «Corporal Clegg» uma das primeiras manifestações de uma demanda temática para Roger Waters que teria expressão maior mais de dez anos depois entre The Wall e The Final Cut. O álbum que apresenta a primeira capa criada por Storm Thorgerson tem diretos nos singles seus contemporâneos e em vários registos ao vivo de 1968 que documentam os primeiros dias do resto vida pós-Syd dos Pink Floyd.

E, depois do adeus de Syd, para onde poderiam seguir? A primeira das muitas respostas que lançaram entre 1969 e 1972 chegou pelo cinema, na primeira de várias importantes investidas do grupo pelo grande ecrã.

Antigo colaborador de Jean-Luc Godard, Barbet Schroeder tinha rodado em Ibiza um filme sobre um jovem alemão que fugia da inibição que o atormentava na vida urbana, encontrando a libertação, mas também a tragédia, naquela ilha do Mediterrâneo.

Admirador dos dois primeiros álbuns dos Pink Floyd, o realizador pegou nas bobinas e rumou a Londres, onde mostrou o filme aos músicos, de lá regressando com um «sim» e, mais tarde, a banda sonora de More, que editam em 1969 como o seu terceiro álbum.

Este trabalho de criação de música para cinema precede outros, que os ligariam a realizadores como Peter Sykes ou Michaelangelo Antonioni, cujos filmes a caixa inclui, juntamente com música inédita de Zabriskie Point.

More abriu novas possibilidades também na música, sobretudo na exploração da ideia de conceito que funcionaria como agregador das canções de um álbum (algo que muito em breve aplicariam a discos seus, mesmo sem filmes a justificar a necessidade de uma narrativa).

More não tinha, contudo, respondido às dúvidas que os assombravam desde a saída de Syd Barrett. E, apesar do sucesso e estatuto de culto que Ummagumma (também de 1969) acabaria por obter, esse álbum duplo com um disco ao vivo e um segundo dividindo o espaço de gravação entre peças compostas a solo por cada um dos quatro elementos não representou na verdade o «eureka» certamente desejado.

Com a chegada da década de 70 surgiu a estreia a solo de Syd Barrett em The Madcap Laughs. No mesmo ano ganhava forma, em Atom Heart Mother, a primeira tentativa clara de busca de nova identidade para a música dos Pink Floyd.

Contando com a colaboração do compositor Ron Geesin, apresentado aos colegas por Nick Mason, Atom Heart Morther transportava-os a um encontro imponente com formas da música coral e orquestral, ideia algo em voga num tempo em que experiências semelhantes eram apresentadas por nomes como os Moody Blues ou Deep Purple (e no ano seguinte pelos Emerson, Lake & Palmer). O tempo levaria os músicos da banda a manifestar um certo desencantamento com este disco. Mesmo assim, deu-lhes o seu primeiro número um.

Melhor sorte teria o seguinte Meddle (1971), magnífico disco no qual emerge finamente um novo sentido de coesão a quatro e que se revelaria um dos mais marcantes de toda a discografia da banda.

Tão capaz (tal como o álbum de estreia) de conciliar o classicismo da escrita de canções com um ímpeto experimental, Meddle é, finalmente, um primeiro «eureka» consequente, no sentido em que sugere pistas que os conduziriam rumo às canções de The Dark Side of The Moon que começam a tocar ao vivo mas só levam a disco depois de, em Obscured By Clouds (álbum de 1972 marcado pela presença de novos teclados), terem registado as canções que, num ápice, criaram para a banda sonora de La Valée, que assinalou o seu reencontro com o cinema de Barbet Schroeder.

A sucessão de experiências, umas mais bem-sucedidas do que outras, elevara-os finalmente a um patamar de solidez estética com uma visão com pontaria afinada. A banda não era a mesma que em 1967 se revelara com um impressionante álbum de estreia. Mas o potencial que então dali exalava finalmente se cumpria de novo. Para agora os levar ainda mais longe...

Por: NUNO GALOPIM
Matéria blitz.sapo